quinta-feira, maio 26, 2005

Queda de Ícaro no Vazio

Ao longe ouvimos o som de uma guitarra portuguesa a rasgar o ar rastos prateados de cometas envolvem a vertiginosa queda de Ícaro.
"Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem, nítida de vazio, da minha interpretação compreendendo-se. O meu ser sente-te vazante como se fosse um cinto teu q te sentisse. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas nocturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua no meu céu para que o causes, ou estranha lua submarina para que, não sei como, o finjas."
Reflectida num espelho no meio do árido deserto a silhueta de uma mulher desvanece-se na minha queda. Desmaterializas-te, a tua forma corporea assume a abstracção de um sentimento.
"Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer cousa que eu possa sentir feminina. E quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contronam de mulher. Porque tenho de te falar com ternura e amoroso sonho, as palavras encontram voz para isso apenas em te tratar feminina.
Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade / só / tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. És como que um sentimento que fosse o seu próprio objecto e pertencesse todo ao íntimo de si-próprio. És sempre a paisagem que eu estive quase para poder ver, a orla da veste que por pouco eu não pude ver, perdido num eterno. Agora além da curva do caminho. O teu perfil é não seres nada, e o contorno do teu corpo irreal desata em pérolas separadas o colar da ideia de contorno. já passaste, e já foste, e já te amei - o sentir-te presente é sentir isso."
Com a vertigionosa queda, um raio de luz dourada ilumina o céu, Ícaro atinge violentamente o areal, em seguida caem inumeras perolas prateadas, cometas indolores de sal.
Eleva-se no ar a silhueta e com ela toda a areia: chuva ascendente do desencontro.
Ícaro estendido, do seu olhar brota uma gota de sangue, desnudado espera pelo vôo da fenix.
"Ao querer tocar no teu manto as minha expressões cansam o esforço eestendido dos gestos das suas mãos, e um cansaço rígido e doloroso gela-se nas minhas palavras. Por isso, curva um voo de ave que parece que se aproxima e nunca chega, em torno ao que eu quereria dizer de ti, mas a matéria das minhas frases não sabe imitar a substância ou do som dos teus passos, ou do rasto dos teus olhares, ou da côr triste e vazia da curva dos gestos que não fizeste nunca."
VAZIO

...Ícaro
... excertos "" livro do desassossego de Bernardo Soares

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